quarta-feira, abril 24, 2002

A Mula sem cabeça

Depois que anoitecia na fazenda São José, encravada entre espigões da serra do bebedouro, nos contrafortes da serra da Mantiqueira, só se ouvia a algazarra dos cachorros latindo e das crianças brincando. O sol deixava o imenso terreiro de café muito quente. As crianças corriam pelo mormaço, envoltas pela escuridão. Os mais velhos conversavam na varanda da casa principal e os jovens sentavam no escadario da entrada do casarão, numa conversa ferrada. Luz, só de lamparina ou lampeão. De repente, a algazarra da criançada terminava como num passe de mágica. Então, a gente via todas as crianças formarem uma imensa roda em volta de dona Maria de Morais, a querida Vóquinha, corruptela que os netos criaram para Vovó Mariquinha. Analfabeta, tinha uma tremenda memória e sabia de cor absolutamente todas as estórias infantís da literatura universal e da tradição local. Ela contava de tudo. Uma vez, contou da mula-sem-cabeça. Era uma mula imensa, feroz, enfeitiçada, que andava pelas madrugadas no estradão ou entre as lavouras de café e pelas invernadas. Jamais entenderei como a gente admitia, mesmo sendo criança, que era um fato a mula-sem-cabeça ter os olhos de fogo e soltar chamas pelas ventas...
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